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Nebula

Maitresse_de_maison
(Soundtrack)

A moça chegou no final do mês de fevereiro. A princípio desconfiei, trazia pouca bagagem, usava roupas muito simples para uma nobre e os cabelos soltos e desalinhados, como os de uma criança. Não falava palavra de francês, nem esforçava por comunicar-se, sempre quieta, taciturna.
Com o passar dos dias acabei por afeiçoar-me a ela, em observar-lhe os modos e atitudes gentis. Dona de um brilho nos olhos que não consigo descrever com exatidão, ao mesmo tempo em que seus olhos sorriam, pareciam marejados. Cativou-me.

Destinei-lhe um quarto pequeno, próximo da escada, sem janela além de uma pequena abertura para ventilação. Parecia satisfeita, não se queixou, e passava os dias a estudar à luz do candeeiro. Quando a temperatura era mais amena, ficava no jardim. Comia pouco, não era exigente com o que era servido, na maioria das vezes a terrina retornava quase intocada.
Com o passar dos dias decidi oferecer um quarto melhor, no andar superior, com muita claridade, para que pudesse estudar, e ar fresco, a ver se melhorava o apetite. Esboçou um sorriso e agradeceu, fez a mudança calada, e deixou-me com a dúvida se, para ela, realmente fazia alguma diferença.

Mantinha o aposento arrumado e limpo, pouco deixando afazeres para as criadas do hôtel. Às vezes voltava da Biblioteca trazendo algumas flores, que arrumava caprichosamente na caneca d’água. Ofereci um vaso pequeno, de porcelana rara... trincado, é fato, mas quase não se percebia e era bem vistoso. Para além dos livros e pergaminhos, objetos de escrita e o suave odor de lavanda que emanava de suas roupas, o vasinho florido era o único toque pessoal que acrescentara ao quarto.

Recebia algumas cartas, de tempos em tempos. Vinham de variadas origens, de Portugal, a maioria delas. Tenho por hábito colocar a correspondência dos hóspedes por baixo da fresta da porta, mas entregava a ela as cartas pessoalmente. Eram as oportunidades de vê-la sorrir, e eu gostava. Nos dias em que as cartas chegavam, podia ouvi-la cantarolar, uma voz suave e afinada, embora não percebesse o que as canções diziam, o tom demonstrava que eram cantigas alegres. Nessas horas, era eu quem sorria.

Logo que chegou recebeu uma carta que a deixou muito entristecida. Ao jantar sentei-me perto dela, os olhos vermelhos e levemente inchados, tinha chorado muito. Pareceu aliviada em ter-me como companhia, e apesar da comunicação plena impedida pela barreira do idioma, conseguiu contar-me da morte de um bom amigo, muito querido a ela. Falamos como pudemos a respeito da vida, contou-me que era idoso, falamos sobre perdas... eu gostaria de comunicar-me com mais exatidão, ela também, mas por mais que saiba que não falamos o que ou como gostaríamos, de alguma forma, nos entendemos.

Por estes dias recebeu uma outra carta. Entreguei a ela, já a espera do sorriso, mas ao reconhecer a caligrafia pareceu preocupada, uma ruga entre as sobrancelhas, deixei-a só. Não desceu para o jantar, nem foi a Universidade. Antes de recolher-me preparei uma caneca de leite perfumado com canela, que ela tanto gostava, e bati de leve na porta.
Abriu a porta devagar e recebeu-me na soleira, sem convidar-me para entrar como era o costume, o corpo ocupando a brecha aberta. Sua fisionomia estava endurecida, inexpressiva. Os olhos estavam diferentes, como jamais havia visto naquele rosto tão gentil.

Ofereci o leite, fez um aceno de cabeça e pegou sem sequer olhar, quanto mais aspirar o aroma da canela, como gostava de fazer, e virou-se para colocar a caneca sobre a mesinha. Não me contive, avancei dois passos. Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, de costas para mim, e apoiada no espaldar da cadeira.
Sem saber como proceder, já que tinha avançado, perguntei a ela: “Quelqu'un est mort?” Demorou alguns instantes a virar-se, mas quando o fez, arrependi-me imediatamente de ter perguntado. Não havia naquele rosto a sombra do que conhecia, o próprio ato de virar-se pareceu deliberado, como se estivesse esforçando-se para dominar o corpo e ordenar-lhe movimentos.
Olhou-me nos olhos, respirou fundo, e susteve a respiração por alguns instantes. Soltando o ar, e numa voz grave, firme, irreconhecível, respondeu-me:
“Moi”
Maitresse_de_maison
Não apenas a resposta, a maneira como falou, o tom da voz e seu aspecto, senti-me atingida com um baque, e, sem perceber, recuei alguns passos.
Ela estremeceu e notei que ainda vestia as roupas muito leves que usava pela manhã.
Toquei-lhe o braço, estava gelada. Contive-me e não a abracei, tudo nela parecia repelir qualquer calor ou afeto. O que pude fazer foi diligenciar-me e preparar a cama, acrescentando um cobertor pesado. Ao ver a cama pronta olhou-me com gratidão e deitou-se, virada para a parede, enrolando-se e abraçando as pernas. Deixei a caneca de leite, para se sentisse fome, apaguei a vela e encostei a porta.
Já em meu quarto surpreendi-me abanando a cabeça, tentando afastar os pensamentos do que se passara. Acredito que uma noite de sono e o nascer do sol são a cura para qualquer mal. Ela teria o sono, o sol pela manhã, e, se assim o desejasse, minha amizade.

Despertei antes da hora costumeira, meu primeiro pensamento foi para ela. Vesti-me e fui até seu quarto, a cama desfeita e vazia. Encontrei-a na cozinha, sentada num banco baixo, ao pé do fogão, os cotovelos apoiados nos joelhos e segurando uma caneca de chá. Pareceu-me notar uma sombra de sorriso em seus lábios ao ver-me, mas logo fez um cumprimento com a cabeça, levantou-se e seguiu para o jardim, deixando a caneca sobre o banco. Caminhava devagar, como se estivesse tentando equilibrar-se, fiquei aliviada quando sentou-se. Discretamente passei a manhã observando-a sempre que podia, entre um trabalho e outro.

Na hora do almoço, os hóspedes e habituais reunidos, ela não voltara do jardim. Numa bandeja pequena coloquei uma terrina de caldo, quente e forte, alguns pedaços de pão fresco, uma caneca de vinho, e fui encontrá-la ainda recostada ao tronco do velho carvalho, olhos fechados, as pernas esticadas.
Os cabelos levemente agitados pelo vento e o sol filtrado pela a folhagem da copa, em contraste com a extrema palidez de seu rosto davam à cena uma aparência irreal, havia tanto silêncio que chegava a oprimir. Aproximei-me vagarosamente, para não a assustar, confesso, temendo macular a beleza do momento.
Entreabriu os olhos quando escutou meus passos e logo fechou-os novamente. Penso que foi a maneira que encontrou de sinalizar que não queria companhia, e respeitei, deixando a bandeja a seu lado, fazendo movimentos suaves, como se acreditasse que dormia. Algumas horas depois entrou na cozinha carregando a bandeja, havia tomado algumas colheradas do caldo e comido um pedaço pequeno do pão. Colocou a bandeja sobre o aparador e subiu para o quarto.

Mantivemos essa rotina por algumas semanas, e embora tenha tentado entabular conversa, só obtinha como resposta algum aceno de cabeça ou um meio sorriso, no qual os olhos não participavam. Acostumei-me evitar olhar para seu rosto, o contraste entre aquela moça que chegara e a sombra dela que se apresentava entristecia-me.

Cartas continuaram a chegar, e deixei de entregar pessoalmente, colocando-as pela fresta da porta, como tinha o costume de fazer. Um dia, bem cedo, surpreendi-a reavivando as brasas do fogão na cozinha. Fiz menção de ajudar, afastou-me com um gesto negativo, terminou o que fazia e saiu para o jardim.
Ao colocar a lenha pesada, para iniciar os trabalhos diários, vi que estavam sobre as brasas, já queimadas em parte, todas as cartas recebidas, algumas sem abrir, o lacre intacto derretendo ao fogo.

Maitresse_de_maison


Naquela manhã precisava de ir até a fazenda de meus pais, em busca de gêneros para servir aos hóspedes. Praticamente todo o alimento que servia provinha dali, uma propriedade bem cuidada, terra fértil, árvores frutíferas, e muitos animais. O carroceiro já tinha partido mais cedo, eu costumava seguir a cavalo, depois de servir o desjejum.
Estava selando meu favorito quando a vi na janela, observando a movimentação com interesse. Súbito, uma idéia, subi até seu quarto e convidei-a para acompanhar-me. Abriu um sorriso, pensei que ia abraçar-me, mas não o fez. Descalçou as chinelas de casa pela primeira vez em semanas. Abriu o baú e retirou um par de botas de montaria, calçou-as e afivelou rapidamente, e parou de pé em minha frente, como que diz: vamos?

Na estrebaria pedi a ela que escolhesse um dos cavalos. Não são muitos, mas consigo uma boa renda em alugá-los para os hóspedes. Ela aproximou-se de cada um deles, sem temor algum. Acariciava-os, passando os dedos pela crina, apalpando os jarretes, sabia reconhecer um bom cavalo. Escolheu um garanhão branco, recentemente adquirido, mais veloz que forte, ao qual eu mesma não tinha me habituado ainda. Era arredio, nas vezes em que montei tive alguma dificuldade para controlá-lo. Avisei a ela, mas com um gesto algo impaciente, tranquilizou-me. Pensei que uma moça que possuía aquelas boas botas de montaria, bem desgastadas, sabia o que estava fazendo.

Inspecionou os arreios depois de colocados, apertando ou soltando aqui e ali, e, num movimento rápido, montou. Com bastante perícia ajeitou as saias, de maneira a não atrapalharem seus movimentos, tendo enrolado-as nas pernas de um modo que, certamente, não usaria numa visita a cidade. Não que me importasse, mas sempre há os puritanos, que vêem coisas para além do que existem...

Montei e seguimos. A manhã estava fresca, algumas poucas nuvens, bem brancas, em contraste com o azul, Não choveria até a tarde. De início seguimos a passo, até estarmos fora dos arredores da cidade. Ela não parecia ter dificuldade alguma em controlar o cavalo, ora segurava as rédeas com firmeza ora as deixava mais soltas, como a acostumar-se com o animal. Por vezes falava algumas palavras em português, perguntei a ela o que dizia, tentou explicar-me, mas não entendi, rimos e deixamos de lado as traduções.

Já nos campos, olhou-me de modo maroto, piscou, e sorriu. Deu algumas batidas leves no flanco, abaixou-se e começou a galopar, muito velozmente. O dorso abaixado, quase deitada sobre o pescoço do animal, a cabeça abaixada ao lado, conduzia o animal com maestria. Surpreendi-me, são raras as moças que cavalgam assim. Segui-a como pude, meu cavalo era mais pródigo em força que em velocidade, galopamos pelo campo, subindo e descendo as colinas mais suaves, numa brincadeira divertida. De tempos em tempos ela parava e olhava na minha direção, eu apontava o caminho e ela seguia, às vezes à frente, às vezes voltava para encontrar-me, espicaçava-me e voltávamos a galopar.

Na residência de meus pais, foi prestativa e gentil. Apresentei-a, e apenas nesse momento dei-me conta do quão pouco sabia sobre ela! Percebi que ela não entendia bem o dialeto carregado falado por meus pais, originários do Norte, mas comunicaram-se de algum modo. Tomamos uma refeição saborosa, ela comeu com apetite, corando a cada vez que se servia novamente. As cores voltaram ao seu rosto, os olhos brilhavam novamente, daquele jeito que cativou-me quando a conheci. Auxiliou com o carregamento da carroça, ajudando-me a escolher as peças de carne que levaria.
Certo momento dei por falta dela, estava ajudando minha mãe a recolher os ovos frescos, e divertia-se brincando com as galinhas. Surpreendi-me, minha mãe tem por hábito proibir estranhos no galinheiro, costuma dizer que as doenças das aves vem por meio dos olhos maus. Certamente, aquela moça não os tinha.
A carroça seguiu viagem, e ainda ficamos mais algum tempo, sentados na porta da cozinha, na gostosa modorra que sempre vem após uma lauta refeição. Na despedida, meus pais a convidaram a retornar sempre que quisesse, ela agradeceu com um sorriso.

As cores do final da tarde já se apresentavam quando nos aproximamos da cidade. Fizemos o percurso de volta conversando calmamente. Contou-me que fora criada em um convento, que não conhecera seus pais, que seguia a carreira militar, e que, embora tivesse concluído com louvor os estudos e o treinamento, gostava de estudar e pretendia alcançar o domínio do conhecimento em outras áreas. Contei a ela um pouco a meu respeito, parecia interessada, fazia perguntas para entender melhor. Uma conversação amena, mas eu sentia que, para aproximar-me mais dela, e talvez ajudá-la, deveria saber o que se passara naquela noite. Foi sem muitos rodeios que, ao ver as luzes da cidade, perguntei: “Vous voulez parler de ce qui s'est passé? Quel était si terrible dans la lettre?”
Ela olhou-me visivelmente surpreendida. Pediu-me que repetisse a pergunta, algo que costumava fazer quando não tinha certeza de ter entendido bem, e eu repeti.
Sua reação foi para mim completamente inesperada. Como quem realmente não sabia ao que me referia, simplesmente perguntou: “Quelle lettre?”

A princípio pensei que estava zombando de mim, ou que não queria falar no assunto. Mas olhei bem para ela, sua expressão, o ar de quem, efetivamente, esperava uma resposta.
Nesse momento, meu coração acelerou. Realmente não fazia idéia do que eu estava dizendo!

Maitresse_de_maison


Ela insistiu na pergunta, eu olhava para frente, o pensamento muito confundido. Tive a certeza de que algo muito grave se passara, não desejava continuar o assunto e acabei por dizer a ela que possivelmente estava enganada, confundindo-a com alguma outra hóspede, e pedi desculpas.
Não consegui mais entabular conversa, nem ela, que pareceu aborrecida por ver-se confundida. Sei que não me foi possível pensar em algo melhor a dizer naquele momento, e que dei a ela a impressão de ser, para mim, como qualquer dos hóspedes que recebo, o que não era verdade, em absoluto! Havia entre nós uma cumplicidade e afeto raros, mas, dadas as circunstâncias e sem saber o que fazer, limitei-me a comentar o por do sol e depois ficamos em silêncio até chegarmos.

Dormi pouco durante a noite, preocupada, tentando analisar suas atitudes nas ultimas semanas e buscando outros sinais de alteração, mas não conseguia atinar com nada. Apesar de entristecida, continuava a estudar. Não voltara a Universidade, mas passava os dias no jardim, a ler, ou em seu quarto, escrevendo muitas notas sobre os estudos. Um dia confidenciou-me que precisava avançar em uma matéria antes de prosseguir com as aulas, que seriam inúteis se não alcançasse o conhecimento básico requerido. Cumprimentava as pessoas pelo nome, mantinha-se asseada, a única diferença era o fato de não ter deixado hospedaria até esta data, mas era previsível, as pessoas costumam recolher-se em si depois de um grande abalo. Não havia indício de que lhe estivesse faltando o juízo, até o presente dia! O acontecimento dissolvera-se de sua memória completamente. O que mais teria a moça perdido?

Pela manhã, o pensamento mais claro, resolvi observá-la com atenção. Acordou mais cedo que o costume, e, pela primeira vez em semanas, cumprimentou-me com um sorriso. Tinha descido as escadas cantarolando, e ao chegar à cozinha brincou com a cozinheira sobre furtar um pão do forno antes que ficassem muito corados. Estaria tudo perfeito, ela estava de volta, não fosse...

Aprontou-se e saiu logo após o pequeno almoço. Disse-me que precisava verificar o calendário das aulas da universidade e inscrever-se novamente, tranquilizei-me e segui com meus afazeres.
Retornou pouco antes do jantar, com a mesma expressão serena com que saíra. Queixando-se de leve cansaço, subiu para o quarto. A noite estava fria, e, antes de recolher-me, levei a ela o costumeira caneca de leite com canela. Sorriu, agradeceu-me, e ao beber, mal conseguiu disfarçar uma careta. Riu quando notou que eu percebera, dizendo que aquilo era a coisa mais horrível que já experimentara, e depois desculpou-se, oferecendo-se para descer e preparar um chá para nós duas. Não consigo imaginar a expressão que meu rosto tomou ao ouvi-la. Confusa, ainda pediu desculpas, pensando que fora grosseira, ou magoara-me, consegui sorrir e dizer que não tinha importância e que na próxima noite traria-lhe um chá quente. Não haviam mais dúvidas: Ela precisava de ajuda!

No dia seguinte, quando seguiu para as aulas, tomei a decisão de procurar-lhe a origem e avisar algum parente ou amigo. Venci meus pudores e convicções e entrei em seu quarto. Comecei pela escrivaninha, a procura de algo que me pudesse auxiliar. O livro de registro apenas continha seu nome completo e como origem ela anotara apenas “Portugal”. Desconheço a geografia do Reino de Portugal, mas certamente apenas esta informação não seria suficiente.
Vasculhei seus poucos pertences, dizendo a mim durante todo o tempo que era a atitude mais correta. Buscava alguma carta, um diário, algo que trouxesse mais informação que a pouca que eu tinha, mas não encontrei nada. Todas as cartas tinham sido queimadas, mesmo as recentes. Suas anotações eram registros das aulas e planos de estudos. Sentei-me na cama, desalentada. Ela estava só, e eu também.


Maitresse_de_maison


Em observá-la atentamente, passei a notar alterações em seu comportamento e fisionomia. Ela retomava a vida, mas não era a mesma pessoa. Seus hábitos mudaram, assim como seu olhar. Tornara-se endurecido, seus olhos não mais brilhavam e participavam dos sorrisos.
Passara a interessar-se por astronomia, perdia noites de sono, e não eram raras as manhãs em que atrasava-se para as aulas. Voltava para almoçar e seguia para a Biblioteca, estava empenhada em fazer cópias de cartas celestes, dedicando-se a isso à beira da exaustão.
Eu procurava fazer-lhe companhia no início das noites, sentávamos no jardim e ela descrevia-me as constelações, contando as histórias que deram origem aos nomes pelos quais eram conhecidas, mas logo o sono vencia-me e era obrigada a recolher-me. As noites calmas, eu sempre procurava conduzir a conversa para suas origens, seu passado, a ver se descobria maneira de contactar algum parente ou conhecido, mas suas respostas eram vagas, logo voltando ao assunto de seu interesse.

Numa tarde chuvosa chegou encharcada, as vestes pingando por onde passava, mas não parecia perceber, empolgada que estava em entregar-me uma pequenina semente que, segundo ela, daria origem a uma frondosa árvore, de raízes firmes, cuja beleza encantaria a todos. Seu olhar transparecia tanta doçura ao mostrar-me aquela semente que não tive dúvidas em segura-la firme nas mãos e sorrir para ela, numa mostra de entendimento, mas em meu íntimo não conseguia compartilhar de seu interesse por aquilo. Conduzi-a a um banho quente, tendo colocado a semente algures, que já nem me lembro. Não falamos mais sobre isso, ela parecia ter-se esquecido, mas sempre que podia estava no jardim, hoje percebo, a verificar se eu havia plantado. Nunca me perguntou, evitei o assunto e ela esqueceu-se, ou deu-se por vencida.

Seus estudos prosseguiam, alimentava-se, cuidava de si, mas parecia viver em outra realidade. Era encantadora no trato com as pessoas, de inteligência vivaz, bem humorada, e quem a conhecesse recentemente não teria por ela nada menos que admiração e afeto. Mas eu sabia que estava no limite, a tênue linha que separa a lucidez da loucura estava prestes a ser ultrapassada. Esperava ansiosamente que alguma carta chegasse, estava determinada a não entregar a ela, abrir, e tentar contatar o remetente, mas por caprichos do destino nenhuma correspondência destinada a ela havia chegado nos últimos dias.

Sempre que podia saía a cavalgar, por vezes em pelo. Batizara o garanhão branco de Somnia e zelava por ele, mantendo o pelo limpo e brilhante, trançando a crina comprida em formas belas e intrincadas, trazendo-lhe vegetais frescos do mercado. Eu pensava que era quase um poema pronto, ver a moça em seu mundo de sonho a cavalgar o belo animal cujo nome tinha o mesmo significado.

Numa manhã particularmente atribulada a correspondência dos hóspedes foi entregue a uma das criadas, que deixou-a, displicentemente, sobre a mesa de recepção. Creio que os hóspedes foram passando e recolhendo as que lhes eram destinadas, pois só me apercebi quando havia apenas uma carta. Distraidamente peguei no envelope, e meu coração deu um salto quando li o nome dela como destinatário. Abaixo, o remetente, apenas uma letra: A.
Maitresse_de_maison

A carta nas mãos, o pensamento agitado. Seria correto abrir uma correspondência? Por mais que estivesse decidida a faze-lo, no momento em que a oportunidade se apresentou as dúvidas ganharam força.
Revirei o envelope, talvez não fosse necessário abrir, poderia haver algo do lado de fora, mas não. Se quisesse contatar algum parente ou amigo, precisaria de abrir a carta, e foi o que fiz. Não consegui entender o que dizia, mas haviam referencias a locais, nomes de pessoas, tive a certeza de ter conseguido o elo que tanto procurava.

Escrevi uma carta formal e sucinta, a informar o que se passava, sem entrar em detalhes. Foram vários rascunhos até chegar a forma ideal. Não sabia a quem estava escrevendo, e achei por bem relatar o que se passava sem solicitar nada. Se fosse realmente um bom amigo, viria. Se fosse algum conhecido apenas, certamente que encaminharia a carta a algum parente ou alguém que se importasse. Escrita, relida e reescrita algumas vezes, busquei um portador que fosse confiável e, principalmente, veloz. Entreguei a missiva com muitas recomendações, para que fizesse todas as tentativas possíveis, no envelope alguns nomes e locais fielmente copiados, até onde pude perceber.

Preparei o chá para nós duas e, antes de bater à porta, hesitei. Por mais que se fizesse necessário o aviso do que se passava com ela, senti-me muito mal por ter aberto a correspondência que lhe era destinada. Trazia a carta no bolso, sabia que deveria entregar, mas o lacre desfeito... Peguei na carta e entreguei. Ela olhou para o envelope, de certeza que percebeu que fora aberta, mas não se importou e colocou-a sobre a escrivaninha, sem ler.

Nenhum sinal de que reconhecesse a caligrafia, ou que, para ela, o remetente tivesse alguma importância. Nesse momento pensei que meu esforço tinha sido vão, mas tinha a certeza de ter agido correta e coerentemente. Se nada resultasse, sabia que estávamos juntas, que havia uma profunda ligação de afeto e respeito. Ela não estaria sozinha, até onde me permitisse alcançá-la.

Irises
(Soundtrack)


Minha vida transcorria sem percalços. Estava onde labutei a chegar, à minha disposição todo o conhecimento que nunca alcançaria em Portugal. Tinha em Amélie, a dona da hospedaria, para além de uma amiga, uma alma gêmea. Entendiamo-nos, apesar de haver coisas que apenas poderiam ser ditas em nosso próprio idioma, tão diferente. Quase sempre dispensávamos as palavras, não se faziam necessárias frente a tamanha identificação.

Gostei dela desde o dia em que nos encontramos, recém chegada, sem conhecer o idioma, tudo parecia-me hostil até que cheguei a sua hospedaria. Foi solícita e amigável, lembro-me bem de ter percebido que venceu seus preconceitos e aceitou-me sem reservas. Ao fim da primeira semana ofereceu-me um quarto excelente, com luz e ar fresco, sem cobrar mais por isso. Não que tivesse algum problema com valores, o que tinha trazido fora cuidadosamente calculado para que pudesse estudar, sem que tivesse de trabalhar para manter-me.

Meus dias transcorriam em paz, os estudos e a dedicação necessária. No coração, cheia de saudades, meu filho adotivo Celinho e nossa pequena casinha na cidade do Porto, coberta da mais verde e brilhante hera. Nossa casa da hera, como costumávamos chamar. Tenho na memória um tempo em que meu sorriso não tinha este travo de saudades...

Estive doente por alguns dias, não sei precisar quantos. Na verdade, não sentia nada de diferente, além do fado de não sentir nada. Mademoiselle Amélie, pelo que lembro, cuidou-me. Penso que falha-me a memória sobre este período, remeto-me a analisar a palavra: em–mim-mora= memória. Seja o que for que Amélie, por vezes, tente trazer-me á lembrança, o fato é que em mim, não mora mais. Aceito com resignação e sigo. Se algo passou-se? Não sei dizer.

Que não me façam perguntas sobre os dias em que andei distante. Não há em mim a menor lembrança do que se passou, e, de alguma maneira que não sei explicar, sinto-me grata. A Vida segue seu curso e sinto-me abençoada por não trazer em mim nada do mal que me quiseram infligir e que não me pertencia.
Amélie tem tido para mim cuidados extremos. Aparentemente tenho esquecido de coisas importantes, das quais deveria recordar, mas... não lembro!
Fica a dúvida, devo esforçar-me para lembrar, ou seguir? A resposta vem do âmago, e é clara: Proteja-se

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When the night is overcome, you may rise to find the sun
Irises
Devo mesmo estar doente... A primavera ainda não se fez sentir de todo, o ar da noite continua muito frio. Acordo com o corpo todo suado, os cabelos empapados.

Estou sentada ao pé da cama, nas mãos uma taça, pequena, lavrada em prata, de borda filigranada e incrustações em cristal, bastante desconfortável para beber. No fundo da taça restos de uma bebida com aparência de vinho, mas tanto a taça quanto o odor me são completamente desconhecidos. Não consigo identificar, e apesar de ter molhado o dedo, não tenho coragem de levar à boca o estranho líquido.

Acendo o candeeiro e pego na taça. À luz da lua não havia conseguido observar os detalhes, um belo trabalho, sem dúvida! Vou até a porta do quarto, verifico, está trancada, o ferrolho corrido até o final, como faço todas as noites antes de deitar-me. Examino novamente a taça, tenho certeza de jamais ter visto o objeto que está em minha mão, quanto mais ter trazido para o quarto e bebido dela. Sinto medo, algo raro de acontecer comigo, e estremeço. A taça cai no chão e o resto do líquido escorre entre as tábuas do assoalho. Abaixo-me, pego a taça para colocar na mesa. Na base, um símbolo gravado, este não me era desconhecido.
Algo familiar tranquiliza-me, e tento convencer-me de que estou sonhando. Apago o candeeiro e deito, ainda tensa e tremendo, esperando acordar no dia seguinte sem estas estranhas impressões que me chegam.

Acordo muito cedo e antes de abrir os olhos lembro-me do fato ocorrido durante a noite. Entreabro um dos olhos bem devagar, e lá esta a taça, exatamente onde a deixei!
Bem despertada, em busca das explicações racionais, visto-me e vou à cozinha. Amélie e as duas criadas que a serviam, examinaram a taça, que talvez pudesse ter sido colocado por engano em meu quarto. Foram veementes em afirmar que nunca haviam visto tal objeto.
Não sei o que pensar, volto ao quarto e enrolo a taça num pedaço de tecido, guardando em meu baú. Vou até a biblioteca da universidade, para tentar investigar do único ponto conhecido: o símbolo Triskle gravado na base, mas apenas encontro poucas informações, na realidade eu conhecia mais do significado. Tudo o que lia parecia-me tão pequeno, perto do que eu sabia!
Não seria ali que encontraria as respostas necessárias.



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When the night is overcome, you may rise to find the sun
Maitresse_de_maison
(Soundtrack)


O homem chegou cerca de um mês após o envio de minha carta. Era alto, cabelos negros começando a embranquecer nas têmporas. Sério, apresentou-se como um antigo amigo e pediu imediatamente para conversar com Irises, não aceitando a refeição que ofereci. Falava fluentemente o francês, custou-me atender seu pedido sem que antes fizesse as perguntas que me afligiam há tempos.

Pedi a uma criada que a fosse chamar, e, ao chegar, olhou interrogativamente para o homem, depois para mim, como a perguntar quem seria tal pessoa. Ele percebeu, penso ter notado um estremecimento em sua voz quando apresentou-se a ela e pediu-lhe alguns minutos para conversarem. Ela concordou, mas pediu a mim que estivesse presente.

Falavam em português, mas tanto ele quanto ela entremeavam algumas frases ou palavras em francês na conversação, creio que em respeito a minha presença, e pude entender os temas básicos da conversação. Ele perguntou sobre seus estudos, sobre a vida em França e a saúde. Nessa hora contive-me para não interrompe-la, as respostas eram sempre vagas, a dizer que tudo estava bem.
Perguntou a ele sobre a cidade do Porto e seu filho, Celinho. Ele deu-lhe as mais recentes notícias sobre o filho, ela sorria ao escutar. Em determinado momento fez menção a casa que ela possuía na cidade de Chaves, ao que ela respondeu com uma veemente negativa, afirmando que sequer conhecia a cidade, embora tivesse desejo de visita-la. Nessa hora meu olhar cruzou com o dele, e calamo-nos, num assentimento mútuo.

Ela pediu licença para ir à Universidade, estava atrasada. Foi gentil, cumprimentou-o e agradeceu a visita, com formalidade. Ficamos os dois a sós, e então pude contar a ele o que se passara naqueles meses. A cada informação que dava ele assentia com a cabeça, parecia compreender mais do que diria a mim.

Não aceitou o convite para hospedar-se, disse-me apenas, em tom professoral, que as pessoas estão sujeitas a cometer erros em seu caminho, por vezes é possível retomar de onde paramos, por vezes torna-se necessário, para alívio da alma, beber da taça do esquecimento e prosseguir sem lembranças. Pensava que era isso que tinha acontecido com ela. Lembrei-me da taça que ela encontrara em seu quarto e trouxe para que ele visse. Pegou no objeto e sorriu, dizendo-me que fora um presente dele há muitos anos, juntamente com um forte elixir, para depuração do corpo e do espírito. Ela talvez não se lembrasse de como a taça chegara a suas mãos, nem sabia que estivera em seu poder tanto tempo, mas optara por curar-se, e isso o tranquilizava.

Pediu-me que zelasse por ela, ao que respondi prontamente que era o que estava fazendo e pretendia continuar. Éramos amigas, aquela amizade que nasce da profunda compreensão de almas, inabalável. Ele sorriu e respondeu que essas amizades eram mesmo raras, e que sentia-se em paz em deixar-nos. Com muita seriedade pediu a mim que evitasse fazer menção aos acontecimentos que despoletaram a alteração de comportamento de Irises, que não a fizesse lembrar do que, à custa de parte da sanidade, optara inconscientemente por esquecer. Que estava certo de que não haveriam mais alterações em seu comportamento para além do que já estava perdido, e garantiu-me que Irises era a mesma pessoa que sempre conhecera, a única mudança era o lapso temporal que sua memória criou para protege-la.

Combinamos de continuar trocando correspondência, ele confidenciou-me que pretendia continuar a viagem pela França e rever alguns velhos amigos, mas que manteria-me informada dos lugares que visitaria, para que minhas cartas o pudessem alcançar.
Prometendo visitar-nos assim que possível, despediu-se e seguiu. Eu estava calma, a paz e confiança que o homem conseguiu transmitir-me era suficiente para prosseguir.

Irises
A jogadora despede-se do RP nesse ponto. Perdi-me do RP da Irises, não estou conseguindo encontrar um rumo para ela
Tinha pensado em desenvolver mais esta história, mas creio que a finalidade foi cumprida, deixar o RP em suspenso. A boneca segue estudando, não completamente em modo tamagochi, mantendo a KAP, a recente missão na Ordem de Mérito Bússola d’Ouro (grata pelo incentivo aqui, Syl!) e o IHP.
A Casa da Hera será fechada.

Agradeço aos amigos pelo incentivo, as boas palavras, o apoio e afeto. Pela amizade tão vivamente demonstrada nestes dias, cada um sabe do carinho que tenho. Se sentir saudades de voltar a escrever por aqui talvez apresente mais histórias da Amélie, gostei imensamente de trabalhar com ela.
Afetuosamente
A jogadora da Maria Irises

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