Um dos aposentos do Solar dos Torres se transformara num estúdio improvisado. A luz forte da primavera atravessava as janelas e recheavam o local de vívida luminosidade, ressaltando as cores e deixando os mínimos detalhes mais evidentes. Os pergaminhos espalhados, repletos de anotações, as manchas de tinta no chão, os pedaços de mecanismos e objetos das mais diversas formas geométricas, revelavam a complexidade e ansiedade da mente que orquestrava aquele cenário caótico.
Ao centro da sala, Leonardo, passava com delicados e nervosos movimentos o lápis de chumbo sobre um largo papel. Seus olhos se concentravam e fissurados em seu objeto de estudo, transmitiam para mente e então para o papel, as mínimas percepções e detalhes. Experimentava de um estranho êxtase, de fixação e comprometimento com o objeto estudado, ao qual seu espírito o orientava e guiava a força de sua vontade para extrair, dele, a mais pura expressão. O trabalho artístico, antes da realidade, nascia no próprio individuo, não era voltado ao exterior, mas somente ao enriquecimento pessoal, mas era esta característica, que tão violentamente o fazia explodir e afetar todos as sua volta.
O objeto de estudo, era o jovem Giorgio, rapagote franzino, de cabelos ondulados e frágil cútis, que desnudo, diante de seu mestre, permitia-o capturar o seu corpo e transpô-lo ao papel. Apesar de ser direcionado a ele, a fixação da mente de Leonardo, o rapaz entendia, tão bem quanto seu mestre, a tarefa quase sacerdotal que a Arte exigia. Por tanto, ao mesmo tempo em que o desenhista se absorvia, absorvido também estava o modelo, que entendia não ser o seu corpo específico o intuito da arte, mas a natureza, que ele carregava em seu corpo e da qual era herdeiro, involuntário, pela condição de constituinte dela. Ao estudo do natural, se retirava a verdadeira essência, de quem era, sua progenitora, a natureza.
O lápis se esfacelava contra o papel, deixando para trás, no seu rastro, os contornos do corpo de Giorgio. Aquele tipo de estudo, era muito comum para os dois, visto terem sido educados em ateliês e terem tantas vezes disposto e observado a tarefa. Não havia entre eles nenhum constrangimento, mas sim a cumplicidade, dos artistas.
A poucos dias, Leonardo recebera uma carta de um nobre galego, que requisitava a ele, que o ajudasse a renovar a capela local, pintando um afresco, atrás do altar. O rapaz, afoito com a encomenda, uma das primeiras que recebia fora da Itália e a primeira a qual teria autonomia para trabalhar, não mais como aprendiz, mas como feitor principal. Por isso, dispusera grande quantidade de energia para aquela tarefa, recebia um direcionamento prático para seus estudos, além de sua atividade pessoal e a possibilidade de embelezar um local com uma obra sua. Era fato, que não precisava do dinheiro, mas precisava da cobrança, pois os assuntos da cidade e os do Banco Montevani, o qual ele tentava pela força tomar, o afastavam de sua vocação e o conduziam cada vez mais, a subserviência ao lado mais obscuro e implacável de sua alma, que ele lutava para aleijar.
Batidas na porta ecoaram pelo estúdio, que por um momento, parecera completamente estático e então foi perturbado pelo forte som da madeira reverberando. Estava quebrada a redoma, Giorgio se desequilibrara e Leonardo deixara escapar o lápis um pouco além do necessário.
- Quem é? - perguntou secamente Leonardo, irritado.
A porta se abriu, revelando o rosto afogueado de uma das criadas do Solar que ao ver o rapaz nu do outro lado da sala, rapidamente baixou os olhos, terrivelmente constrangida. Os empregados já viam o rapaz que se mudara para lá recentemente, com estranhamento, devido a seus hábitos excêntricos, a tendência a nudez, a insônia, os pedidos repentinos de mais pergaminhos e a relação incestuosa com a prima. Ao grande hall de cenas e momentos acerca dos quais os empregados discutiam avidamente, se adicionaria aquele também. Muitos especulavam que o rapaz era um feiticeiro, outros diziam que era natural do sangue italiano o apetite por orgias e pelo incesto, alguns afirmavam que ele não era um único homem, mas vários, muito parecidos que usavam o mesmo nome, pois tinha o hábito de aparecer repentinamente nos lugares, observar demais e a realizar toda a sorte de profissões. Hora era prefeito, hora era artista, hora era músico, hora era militar, hora era inventor, hora era guerreiro e por aí, muitos afazeres o tornavam já, uma das figuras mais estranhas que já haviam pisado naquele Solar, outrora tão calmo. Por sua parte, Leonardo só sentia falta de seu aposento quente, na casa de Raquel, da liberdade que tinha e da bela visão que o acompanhava diariamente.
- Perdão, senhor, está aí uma senhorita italiana que diz lhe conhecer e o quer ver. - a criada disse timidamente.
- Mandai voltar outra hora. Estou ocupado. - Senhor, ela me disse para insistir, disse que o senhor também gostaria de a ver imediatamente. Disse que seu nome é Giovanna Bast...Baci...
- Giovanna Bascio. - Leonardo reconheceu o nome, seus lábios se retraíram após pronunciá-lo, tivera a impressão que aquele nome tinha um sabor entre o doce e o azedo. Senti-lo novamente o fez se assombrar, mas se conteve, conservando uma certa serenidade. O trabalho artístico que estava realizando anteriormente, o ajudou a manter o equilíbrio.
- Irei vê-la. Conduza a senhorita até um dos escritórios do meu avô no térreo e fique de olho nela.
A criada se retirou, obediente e fechou a porta. Leonardo se levantou, tomou as roupas de seu aprendiz e as colocou no colo dele. Giorgio o fitava expectante, o rapaz sabia quem era a mulher e no que a presença dela ali implicava. Temeu por seu mestre e aguardou sua orientação.
- Você sabe quem é esta mulher, não é?Giorgio assentiu.
- Então, meu amigo, sabe o porquê de ser preciso ter cautela. Não posso deixar que Giovanna saiba de Raquel e é melhor para minha prima também não tomar conhecimento de quem foi Giovanna para mim. - Leonardo se perdeu por um segundo em seus pensamentos. Sentiu uma rápida frigidez de medo. -
Preciso que encontre Raquel e me diga se ela está no Solar ou em qualquer lugar da Vila... Vá rápido, meu amigo e me relate o que encontrar.
O diligente aprendiz, vestiu suas roupas com pressa, saindo por completo do papel que representava e andou rapidamente através da porta. A áurea do estúdio havia se partido, a alma do artista estava obscura e todo o ambiente o seguiu. Ele teve a impressão que uma nuvem cobrira o sol, pois uma penumbra adentrou o estúdio, para lhe fazer companhia. Procrastinou alguns momentos, organizando inutilmente, sua mesa, preparava em sua mente, todos os mais derivados cenários e fixava-se no objetivo de tirar Giovanna dali o quanto antes.
Ele caminhou nervosamente pelos corredores do Solar, até chegar no andar inferior, ao térreo e ao escritório onde estava a mulher. A criada sinalizou qual das portas ele deveria atravessar e se retirou. Ele hesitou por um momento na maçaneta, mas respirou fundo. Precisava enfrentar aquela situação.
Do outro lado da sala, estava Giovanna, voltada para a janela, com as costas banhadas pelos cachos louros. O vestido modelava o corpo dela, destacando os quadris e os contornos do dorso. O perfume doce e exagerado dela, impregnava o cômodo e parecia se esgueirar em cada fresta, como se fosse ali buscar se fixar. Leonardo mal podia acredita no que via, por um momento, reconheceu todas as formas dela, mas ainda uma esperança havia de que não fosse Giovanna ali, ela estava estática, uma mera silhueta de encontro ao sol. No entanto, a possibilidade logo se desmanchou, ela o percebeu entrar e se virou, olhando-o, inicialmente com reconhecimento e depois com o que ele interpretou como uma certa luxúria.
Ao observá-la, Leonardo se recordou de muitas coisas. Voltara por alguns segundos, para os anos que passara em Florença. Um calor subiu de seu baixo ventre e o tomou até ruborizar sua face, por um momento, ele era um garoto de novo e aquela familiaridade que havia entre os corpos dos dois, a forma como naturalmente a luxúria deles se encontrava reavivara. Olhou como lhe era natural as formas daquele corpo que ele tantas vezes possuiu. O decote dela, expunha parte do seios e ele sentiu novamente aquele sabor doce nos lábios. Os olhos dela eram felinos, com um brilho que refletia agressividade, eles o analisavam, a espera do próximo movimento que faria. Ele se sentiu como uma presa.
Leonardo lembrou então, do que havia além do corpo dela. Os anos em que passou sob a influência de Vincenzo e como aquela relação, nada mais era, que a exteriorização das torpezas que o maledicente mentor plantara na cabeça do jovem Leonardo. A luxúria que aquecera seu corpo tantas vezes e o prazer que recebera, se contrapunham, ao prazer e o calor que lhe trazia o fazer artístico e a iluminação. Lembrou também, de Raquel, da devoção que sentia por ela, que transcendia o corpo e habitava delicadamente em suas ideias. Ao pensar em sua amada, formou-se entre ele e Giovanna uma barreira, a oposição entre o passado e o presente, o claro e o escuro.
Ele respirou fundo.
- O que você quer?