-Então? Não se agradece!? Hehehehe. Isso não está tão mau quanto eu pensava que estava, a princípio vais ficar bem. O outro, morreu não morreu? Pareceu-me que era o merd, perdão, vá, o " italiano-mor", que chamava ... Ildefonso, não era? Eles devem ter batido em retirada quando viram que ele estava morto, e foram até aos portões quando eu te ia levar dali para fora ... malditos. Mas o Anton não perdeu a oportunidade de se divertir e matou-os a todos hahahaha! Mas olhem, ficam-me os dois a dever uma, hoje fui o vosso anjo da guarda: ajudei a Raquel quando estava a ser atacada por um doido qualquer e salvei-te a ti, totó , haha ...Leonardo estava repousando sobre uma cama em cômodo pequeno e soturno do Solar. Ele ouviu tudo o que o Filipe lhe tinha a dizer, que não era pouca coisa, mas ficou contente por saber que por trás do ar folgazão de seu primo havia um ar de preocupação.
-Eu agradeço por sua assistência, meu primo... - ele se interrompeu, tentando arrumar posição mais confortável no leito.
- ...você, assim como seus irmãos, tem o dom das armas, um dom que infelizmente eu não possuo e cujo a ausência me reduz a situações como essa...Contudo, fico feliz que tivemos êxito, mesmo que com um alto custo...O primo sorria nervosamente e aparentava não saber muito bem como reagir. Leonardo então pensou que o talento que Filipe tinha com as armas, lhe faltava no trato social, coisa que não os diferenciava, com exceção de que Leonardo não tinha talento com a espada também. Por fim, ele se despediu e retirou-se do quarto rapidamente, num jeito que fazia Leonardo relacionar seu primo com uma personalidade intempestiva como a de Anton, mas ainda menos trabalhada.
A noite não demorou a cair e com ela veio os horrores. Leonardo não pôde dormir, suava e sentia seus ferimentos tornarem todas as posições desconfortáveis. Seu corpo lutava para se curar, ele podia sentir isso, mas a agonia e a febre se apossaram dele. Ele se negou a chamar as criadas, deixaram ao lado dele sobre o criado-mudo um jarro e um copo de madeira para que ele se refrescasse durante a noite. Ele chegou a tentar alcançar o copo, mas acabou derrubando-o e desistiu da ideia.
No fim, o cansaço venceu e ele caiu em sono profundo.
Leonardo acordou no dia seguinte com o som de um pássaro em sua janela, mais exausto do que estivera antes e ficou alguns momentos refletindo e olhando para o teto, até que ouviu o som de batidas suaves na porta.
- Entr..e - ele disse, tentando erguer o corpo e se sentar sobre a cama.
A porta se abriu discretamente e a cabeça de uma criada muito jovem se esgueirou pelo vão.
- Senhor, Leonardo. Espero que não se incomode, mas há alguém aqui que deseja vê-lo.
O pensamento de Leonardo passou rapidamente por sua prima Raquel, sentira a ausência dela, mas entendia que ela deveria estar ocupada com outros feridos.
- Deixe entrar. - respondeu laconicamente.
A porta se fechou e ele tentou melhorar a postura, não queria que sua prima se preocupasse a toa. Ele ajeitou os pés para a fora da cama, ficando sentado na borda do colchão. O braço esquerdo estava imobilizado por uma tala, enfaixado e pendurado por uma bandagem que passava no lado oposto de seu pescoço, para que não forçasse os movimentos. A porta então tornou a abrir, mas a figura que entrou o espantou.
- Lionardo, signore! - exclamou um jovem que aparentava ser apenas uma primavera mais jovem que Leonardo e que acabara de entrar no cômodo.
- Giorgio, o que faz aqui? - indagou Leonardo.
- Eu soube do ataque ao Solar dos Torre e vim o mais rápido que pude para vê-lo.
- Cometeu um erro, não deve optar por ficar sozinho. - Leonardo lançou ao garoto um olhar de reprovação. -
É necessário que eu lembre você do que aconteceu a sua família, ou a minha?- Não, signore. - O rapaz olhou para baixo, relutantemente.
Leonardo se levantou com grande esforço, Giorgio se precipitou para ajudá-lo, mas ele o repeliu. Caminhou até a janela e a abriu gentilmente, o pássaro que estava lá se assustou e voou.
- O que você quer, Giorgio? - Quero saber se vocês mataram Volpone durante o ataque.- Para que? - Leonardo fitou-o.
- Para eu cuspir na cova dele. - o rapaz falou entre os dentes, o semblante preenchido de uma raiva devota.
- Eu não irei deixar que aquele maldito viva impune por seus pecados enquanto nós fomos exilados pelos nossos.- Volpone não sujaria as mãos dessa maneira, mas eu vi Ildefonso de Pino, ontem, o que significa que ele de fato estava envolvido nisso, mas não tenho certeza se ele foi o mandante da ação. - Leonardo respondeu pausadamente.
- Pegue o copo pra mim...ali...
Giorgio pegou o copo, impaciente, e o entregou a Leonardo que encheu o recipiente com a água cristalina do jarro.
- Por que não acha que Volpone foi o mandante? - indagou o rapaz -
E quanto a Ildefonso, ele morreu em combate?- Isso não te interessa. - Leonardo ia levando o copo a boca, mas parou subitamente, ouvindo o som do pássaro que pousava novamente no beiral da janela.
Era um belo pardal, um pássaro atarracado e de bico curto, as penas de suas asas eram pintadas de um castanho tal como a lama o que concedia ao animal ares de simplicidade natural. Leonardo estendeu o indicador e o pequeno animal subiu sobre ele. Provavelmente já estava acostumado com o contato humano, devia ser visita constante as janelas do Solar, sempre a procura de um criado para lhe dar uma migalha de pão. Leonardo deixou que o pardal bebesse com golpes de seu bico um pouco da água que havia em seu copo, que ele segurava com o que podia mexer da mão esquerda.
Num movimento rápido, suas mãos se moveram pelo corpo do pássaro e o imobilizaram. Leonardo repousou o copo sobre o criado mudo novamente e se voltou para Giorgio, que o observava curiosamente.
- Fique longe de Volpone. Ontem, aqui neste solar, os Torre experimentaram a força bruta dos venezianos e os repeliram. Meus primos pensam que isso é uma vitória, eles ainda não entenderam que italianos não jogam como os portugueses. - Leonardo sentenciou acariciando gentilmente a cabeça de seu pequeno refém. -
Os pecados dos pais são os pecados dos filhos. Essa é a nossa maldição, Giorgio.O pardal então começou a se aviltar, movendo o que havia de livre de seu corpo desesperadamente. Giorgio se espantou vendo o animal agonizar, acreditando que Leonardo o segurava com força demais. No entanto, não havia sinais de que ele houvesse aumentado o aperto. A ave apenas convulsionava, inexplicavelmente.
- Solte-o! - ordenou o garoto, mas o rosto de Leonardo não esboçou qualquer emoção.
O pardal então ficou inerte e Leonardo ficou a observá-la, curioso.
- Aconitum é um veneno mortal e os italianos o amam. Eu tive sorte, dessa vez a substância estava na água, mas podia estar nas bandagens ou nos unguentos com os quais me trataram ontem. - Leonardo explicou ao rapaz surpreso. -
Entende o que eu digo, agora, Giorgio? Fique longe de Volpone e não venha me encontrar uma segunda vez. Quando isso tiver acabado, eu te procurarei.O rapaz estava mortificado. Olhou para os lados, subitamente paranoico. Procurava palavras com as quais pudesse responder Lionardo, mas tudo que conseguiu fazer foi assentir com um movimento tímido. Assim como ele, tinha um desejo de vingança que crescia e o remoía por dentro, mas não tinha os mesmos conhecimentos do bastardo e isso o irritava. Ele não acreditava ser correto que Leonardo e não ele, executasse a vingança de seus pais.
Leonardo se deixou levar pelos seus próprios pensamentos, enquanto depositava o animal morto sobre o criado-mudo, a única coisa que vinha a sua mente era a visão de Ildefonso agarrado ao próprio pescoço, tentando estancar sua ferida mortal. Foi tomado de um intenso desconforto, como se sentisse uma ressaca da vingança.
Leonardo se aproximava de seu sinistro portal.