Leonardodavinci
Leonardo ouviu as palavras de Raquel, percebendo um certo ressentimento da parte dela. Ele sabia da natureza inconformada dela, não era a toa que não tinha qualquer devoção a Igreja e que era teimosíssima. Ele adorava esses aspectos nela, ela rompia com o fleuma, agitava, fazia o sangue ferver ao mesmo que mantinha uma personalidade sólida como uma rocha.
De certa forma, Raquel tinha a consciência que em Portugal, o atraso em relação aos outros centros intelectuais da Europa era evidente. Diferente da Borgonha, do Norte da Itália, da região do Flandres e outros pontos importantes, não havia em Portugal qualquer centro intelectual que promovesse a Arte puramente. Mesmo as Universidades, eram espaços para desenvolvimento técnico, destinado a preparar profissionais na servidão a política. Aquela apatia em relação ao Belo e a elevação do homem de ideia, causavam em Leonardo uma ferida tão grande que só parcamente podia ser aliviada pelo bucolismo de Chaves, mas que hora ou outra, como um ferido sem tratamento, emitia seus impulsos de impaciência, assim como a que sua prima revelava. Seu receio maior, não era a ferida em si, mas a infecção.
Quando chegou em Portugal, Leonardo detestou Bartolomeu pelo que fizera com ele. Não era que Portugal tivesse má gente, mas é que a presença do rapaz aqui, era um suicídio artístico. O Destino quis que ele se distanciasse de Florença, mas o sentenciou a viver num lugar onde não havia qualquer tipo de apreço pelo sentimento de retorno a sabedoria grega que se espalhava pela Europa. Não quis, no entanto, bombardear Raquel com seu próprio ressentimento. Sabia que a única coisa que poderia ter, por aquele momento, era a esperança de que um dia, Portugal renasceria e que ele poderia ser uma peça que auxiliaria nesse processo. Leonardo então tomou as mãos de Raquel.
- Não se deixe levar por este pensamento. É fato que aqui ainda há pouco espaço para reconhecerem um trabalho de excelência, mas os tempos mudam. Mudaram por todos os reinos e mudarão aqui também. Confesso que essa mudança tem demorado, mas ela chega, aos poucos. Lembre-se que a Arte é um fim em si mesma. Enquanto esperamos, nos focamos na retratação do Belo e a perfeição fará suas obras transcenderem. Mas para que isso aconteça, não podemos desistir ou dificultaremos ainda mais todo este processo, nos entregando a apatia e desprezando a Arte, seremos apenas vetores contrários ao renascimento que se faz necessário. - Ele tomou um pouco de ar, quase discursava. Levantou a cabeça de Raquel empurrando o queixo dela para cima - Se serve de consolo para agora, um dia te levarei pra Florença, Veneza, Roma e muitos outros lugares. Muita diversão e excelsas ideias nos aguardam... somos jovens, meu amor.
Leonardo sentia-se pleno naquele lugar. Estava na companhia da pessoa que mais amava, num ambiente onde ele poderia sempre revelar o melhor de si. Queria desfrutar daquele momento, desfrutar da juventude dos dois, da energia que ela o fazia sentir. Poderia passar horas a fio, apenas na companhia dela, mas o tempo seguia sempre rápido, muitas vezes contra os dois.
Havia ido também a casa de Raquel com o objetivo de pegar alguns de seus livros, que imaginava que seriam úteis para desvendar o novo e estranho mistério que aparecera na vida deles. Pediu para que sua prima o ajudasse a encontrar os livros e arranjar um modo dele carregá-los. Explicou suas hipóteses, quanto ao disco, ainda em sua maioria especulativas. Sugeriu talvez um dedo de Hettinger, mas era pouco provável que aquele algoz se limitasse a tão parco intuito de apenas propor um jogo de mistérios. O que Hettinger possuía de inteligência, aplicava na violência e sua natureza era, até onde Leonardo pôde presumir, extremamente pragmática.
Os dois passaram mais algum tempo discutindo as possibilidades e Raquel fez com que Leonardo prometesse incluí-la em todo aquele processo de investigação. Assim que conseguiram encontrar os livros, o rapaz resolveu voltar ao Solar, para que evitassem quaisquer problemas que pudessem impedir novas visitas, agora ainda mais animadas pelo novo assunto. Ele teve de sair pelos fundos da casa, devido a intensificação das patrulhas naquela hora do dia. Por vezes um soldado, na oportunidade de ganhar alguns cruzados a mais com uma fofoca, se tornava tão falador como uma senhora desocupada.
Leonardo se sentiu extremamente relutante em atravessar a porta, beijou sua prima mais uma vez, como uma promessa de que não demoraria a vê-la de novo. Durante o resto do dia, carregou nos lábios aquela sensação de leveza, que era sua forma pessoal de culto a beleza de sua musa.
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